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Leandro Vilar

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Rômulo e Remo e o mito de fundação de Roma

A história dos irmãos gêmeos amamentados por uma loba, que anos depois depuseram seu tio-avô traidor, e assim libertaram Alba Longa, para enfim virem a fundar sua própria cidade, contudo, uma briga entre os irmãos levou ao fratricídio, e assim Rômulo saiu vitorioso tornando-se fundador e o primeiro rei de Roma. 

Contudo, embora leiamos e estudamos isso na escola, há alguns aspectos a serem avaliados mais detalhadamente. A história da fundação de Roma possui várias versões, algo bem atestado pelo historiador, biógrafo, ensaísta e filósofo grego Plutarco (c. 46-120) o qual em seu livro Vidas Paralelas - Teseu e Rômulo ele menciona algumas das lendas acerca da origem do nome da cidade de Roma e de sua fundação, embora trate da história de Rômulo com mais detalhe. O problema dessa obra de Plutarco é que não podemos encará-la como uma obra historiográfica propriamente, pois ambos os personagens são lendários, mas na óptica dele, eles teriam existido.

A própria história dos irmãos através dos séculos foi sofrendo modificações até chegar a versão que hoje conhecemos, versão essa que começou a se consolidar no século I a.C, ou seja, sete séculos após a mítica fundação da cidade. Não obstante, uma questão a ser considerada que além dessas versões alguns estudiosos da época chegaram a questionar a veracidade dessas histórias e até mesmo tentaram procurar um relato mais coeso, embora que era uma época onde o Estado romano procurava criar um mito fundador, respaldar uma origem sagrada e divina. Todas essas questões e outras permeiam a história destes dois lendários irmãos. 

Logo, a proposta deste texto é debater alguns desses aspectos, apresentando a versão mais popular da história dos dois irmãos, como também debater a partir da fonte de alguns poetas e historiadores que mencionaram esse mito, assim como, a influência do contexto histórico para reforçar essa história gênica do povo romano. 

Os antecedentes: a linhagem paterna e materna

Marte o deus romano da guerra
A história dos dois irmãos está intimamente ligada a mitologia e ao divino. Pelo lado do pai, os gêmeos eram filhos do deus da guerra Marte (Ares para os gregos), o qual era filho de Júpiter (Zeus) e de Juno (Hera). Marte tivera um papel importante no panteão romano, pois foi um dos principais deuses cultuados pelos romanos, algo superado apenas pelos espartanos com seu culto a Ares. Mas o interessante é que originalmente acredita-se que Marte além de esta associado com a guerra também estaria associado com a agricultura, mas a medida que os romanos se dedicavam a expandir seus domínios e se tornar um povo conquistador, Marte perdeu esse seu lado agrícola, se tornando apenas um deus guerreiro, estando associado a Minerva (Atena) e a Vitória (Niké). 


"Seu culto parece ter sido pouco espalhado na Grécia [...]. Em Roma, porém, era especialmente venerado. Desde o reinado de Numa, teve a serviço de seu culto e dos seus altares, um colégio de sacerdotes, escolhidos entre os patrícios. Esses sacerdotes chamados sálios, eram prepostos à guarda de doze escudos sagrados, ou ancilos, dos quais se dizia que um tinha caído do céu. Todos os anos, por ocasião da festa do deus, os sálios, trazendo os broqueis, vestidos com uma túnica de púrpura, percorriam a cidade dançando e pulando. [...]. Essa procissão solene terminava no templo do deus por um suntuoso e delicado festim. Entre os numerosos templos que Marte possuía em Roma, o mais célebre foi o que Augusto lhe dedicou, sob o nome de Marte Vingador. [...]. As senhoras romanas sacrificavam-lhe um galo no primeiro dia do mês, que tem o seu nome (março), e era por este mês que o ano romano começava até o tempo de Júlio César". (LOPES, 2012, p. 975 apud COMMELIN, 1983, p. 61).

A ideia de se associar a uma linhagem divina foi algo comum na História. Os faraós alegavam ser filhos dos deuses; o imperador Inca dizia ser filho do deus-sol Apu Inti; a Família Real Japonesa alegava descender da deusa-sol Amaterasu; Alexandre, o Grande (356-323 a.C) dizia ser filho de Zeus, e por aí vão outros exemplos. Isso era uma tendência para se respaldar o direito ao poder, o direito ao governo, o direito a liderança, a superioridade, etc. No caso de Rômulo e Remo embora tenham sido personagens lendários, tal tendência estava imbuída em seu mito. 

No caso da linhagem materna, os gêmeos eram filhos da vestal e princesa Réia Sílvia, filha do rei Númetor, senhor de Alba Longa, cidade essa que segundo a lenda foi fundada por Ascânio, filho mais velho do herói troiano Eneias e de Creusa. Númetor era descendente de Ascânio, por sua vez era descendente de Eneias. 

A história de Eneias é narrada em outros poemas, sendo A Eneida poema épico de Virgílio (70-19 a.C) o mais famoso relato das façanhas desse herói troiano filho de Afrodite e de Anquises, o qual recebera dos deuses a missão de salvar os últimos troianos e procurar uma nova terra para restabelecer o seu povo. Ao longo da Eneida, Eneias viaja por vários lugares do Mediterrâneo, finalmente indo se estabelecer na Itália, na região do Lácio, lar dos latinos, algo predestinado, como Virgílio deixara bem claro em seu poema. Os latinos se tornaram um dos povos que originaram os romanos ao lado dos sabinos.


Eneias carregando seu velho pai Anquises, enquanto fugiam de Troia. Cerâmica grega do século VI a.C. 
Eneias acabou se casando com Lavínia a filha do rei Latino, e assim ele fundou a cidade de Lavínio, tornando-se o novo soberano dos latinos. Por sua vez, seu filho Ascânio fundou Alba Longa. A partir desse mito grego, os romanos mesclaram tais aspectos com sua lenda local sobre os irmãos gêmeos que seriam descendentes por linhagem materna desse herói troiano. Númetor segundo a tradição lendária foi o décimo quarto rei de Alba Longa, descendendo de Sílvio, filho de Eneias e Lavínia. Contudo, seu irmão mais novo, chamado Amúlio cobiçava o trono, assim, Amúlio realizou um golpe de Estado depondo Númetor e assumiu o poder, ao mesmo tempo decretou que sua sobrinha deveria se tornar uma vestal.

Vestal era o termo dado as sacerdotisas da deusa Vesta (Héstia para os gregos), associada ao lar, ao fogo doméstico, a família. No Templo de Vesta havia um fogo que jamais poderia se apagar, pois se assim ocorrer-se isso seria prenúncio de maus agouros para a cidade. As vestais tinham que se manter virgens, pois a deusa Vesta havia feito essa escolha em se manter casta. Logo, pelo fato do voto de castidade ser obrigatório, Réia não poderia ter filhos, e assim Amúlio não temeria que futuramente algum filho dela viesse lhe tentar recuperar o trono de direito. Mas para azar de Amúlio os deuses lhe reservaram outro destino.

Aqui vemos agora a ligação com os heróis, novamente remetendo uma ideia de linhagem, de herança diferente, onde em alguns casos os heróis eram semideuses. Por exemplo, os espartanos possuíam uma história de fundação que dizia que o primeiro rei de Esparta teria sido um dos filhos de Héracles (Hércules). O herói Teseu o qual matou o Minotauro, conta-se nos mitos que se tornou rei de Atenas, e de fato por algum tempo os atenienses realmente defendiam essa história de que Teseu foi um rei de verdade. Júlio César (100-44 a.C) dizia que a Família César era uma das famílias mais antigas e nobres de Roma, descendendo do tempo de Rômulo e seus filhos, alegando-se assim uma herança com o "pai fundador" e a linhagem de Eneias. 

Alexandre, o Grande se comparava a Héracles e a Aquiles, já que ambos os heróis são descendentes de Zeus, e como Alexandre alegava ser filho do rei dos deuses, era algo que reforçava essa sua identidade divina. Existem uma antiga história lusitana que dizia que Lisboa teria sido fundada por Odisseu (Ulisses) o herói grego que lutou na Guerra de Troia e o protagonista da Odisseia. O próprio poeta Luís de Camões (c. 1524-1582) menciona em Os Lusíadas essa história desta origem heroica e mitológica de Lisboa e até da Lusitânia (território que antecedeu o Estado português), pois essa teria sido fundada por Luso, um filho do deus Dionísio (Baco para os romanos). 

Aqui podemos notar esse legado divino, mitológico e heroico, onde pessoas ou lugares foram criados por descendentes dos deuses ou pelos nobres e famosos heróis dos mitos. É importante mencionar que os mitos eram uma forma de explicar o mundo, a natureza, o universo, o ser humano, etc. Não podemos achar que os mitos fossem encarados como algo falso, não, eles por muito tempo eram a explicação da "verdade". 


"Mas aqueles que fazem as lendas raramente se contentam em considerar os grandes heróis do mundo como meros seres humanos que romperam os horizontes que limitavam seus semelhantes, e retornaram com bênçãos que homens com igual fé e coragem poderiam ter encontrado. Pelo contrário, sempre houve uma tendência no sentido de dotar o herói de poderes extraordinários desde o momento em que nasceu ou mesmo desde o momento em que foi concebido. Toda a vida do herói é apresentada como uma grandiosa sucessão de prodígios, da qual a grande aventura central é o ponto culminante. Isso está de acordo com a concepção segundo a qual a condição de herói é algo a que se está predestinado, e não algo simplesmente alcançado, envolvendo o problema concernente à relação entre biografia e caráter. Jesus, por exemplo, pode ser considerado um homem que, pela prática de austeridades e da meditação, alcançou a sabedoria; ou, por outro lado, podemos acreditar que um deus desceu, e atribuiu a si mesmo a representação de uma carreira humana". (CAMPBELL, 1995, p. 168).

O assédio de Réia Silvia e a gravidez:

O poeta romano Ovídio (43-18 a.C) em seus livros Fastos, mais especificamente no volume III, nos narra poeticamente o nascimento e a trajetória dos dois irmãos, já Plutarco baseado nos relatos de Díocles e Fábio Pictor, narra essa história em prosa, deixando de lado a linguagem figurada da poesia. Os relatos nos conta que certo dia a sacerdotisa foi até o rio Alba (posteriormente chamado de Tibre) coletar água, contudo, o deus Marte fascinado pela beleza daquela virginal princesa, decidira se apossar dela. Ovídio nos fala que Réia sentiu uma fraqueza e uma tontura repentina então desmaiou, e quando acordou estava grávida (alguns falam que ela teria sido estrupada por Marte, pois ela não consentiu com a relação).


Mosaico romano retratando Reia Silvia adormecida debruçada sobre um vaso, enquanto Marte desce do céu. 
Posteriormente, Amúlio ficou sabendo da gravidez da sobrinha, considerado aquilo uma afronta, pois ela quebrara seu voto de castidade, ele pretendia ordenar a execução de Réia, mas segundo o relato dado por Plutarco, uma das filha de Amúlio, chamada Anto, intercedeu a favor da prima, conseguindo que seu pai não ordenasse a morte dela. Réia acabou dando a luz a gêmeos, algo que na época era sinal de má sorte ter filhos gêmeos. Já que concordara em não matar a sobrinha, Amúlio ordenou que os filhos dela fossem postos numa cesta e jogados no rio. Os bebês foram colocados numa cesta e jogados nas águas do Tibre. Essa história é interessante, pois na Antiguidade possuímos vários outros exemplos de crianças do sexo masculino sendo atirados em cestos em rios. 

O rei acádio, Sargão, o Grande (c. 2300 - c. 2215), conta-se que quando criança foi colocado por sua mãe numa cesta no rio Eufrates. O profeta bíblico Moisés também foi colocado numa cesta, a qual foi atirada no rio Nilo. O primeiro imperador persa Ciro, o Grande (559-530 a.C) também existem histórias de que ele havia sido colocado em uma cesta e atirado em um rio. Talvez seja coincidência estes casos, ou seria uma história comum para se dramatizar a vida destes homens? Pois devemos ter em mente que misturar o real com aspectos lendários era algo comum nos tempos antigos, o estudo da História como uma ciência só começou no século XIX, daí hoje ser dever dos historiadores ou de qualquer um que escreva um trabalho historiográfico prezar pela veracidade das fontes, dos fatos, dos testemunhos e dos argumentos, a isso chamamos de ciência histórica.

Mas além dessa similaridade no caso de meninos serem postos em cestas largadas em rios, se notarmos bem, em todos estes casos, esses homens passam por um momento dramático na infância, não chegam a conhecer os pais, correm risco de vida, mas no fim, o destino lhe reserva grandes feitos. É dito que Sargão teria fundado a cidade de Acádia (Akkad) e depois se proclamou imperador da Mesopotâmia; Moisés se tornou o libertador dos hebreus, os levando embora do Egito; Ciro derrotou os Medas, povo esse que governava os persas, e assim se proclamou imperador persa, fundando o Império Persa. No caso de Rômulo esse se tornou o fundador de Roma e o seu primeiro rei. Nessa concepção, as histórias possuem similaridades: a criança em defesa, abandonada para morrer, mas consegue ser salva, criada por pais adotivos, posteriormente descobre a verdade sobre suas origens, e toma para si, as esperanças de seu povo oprimido, ou algum sonho de fundação, de se criar uma nova pátria. 

De órfãos a heróis:

Sendo assim, os dois bebês foram abandonados no rio Tibre deixados para se afogarem, mas por milagre, a cesta acabou chegando a margem no sopé do monte Palatino, onde uma loba encontrou as duas crianças, então as acolheu lhe dando de mamar. Ovídio nos conta que a loba foi enviada por Marte, pois foi o deus que poupou a vida de seus filhos. Além disso, o lobo era um dos animais associados ao culto de Marte, logo uma aspecto a mais para reforçar essa ligação com o deus da guerra. Algumas versões dizem que além da loba amamentar os dois irmãos, um pássaro da espécie picanço (animal também associado ao culto a Marte) levava comida para os bebês e os ajudava na proteção, mantendo vigília.

Estátua em bronze da Lupa Capitolina, feita no século XII, possivelmente uma cópia de uma estátua etrusca do século V a.C. Aqui temos a clássica representação de Rômulo e Remo mamando na loba.
Uma outra linha de interpretação sugere que a loba não seria um animal, mas sim uma mulher, pois a palavra latina lupae designava tanto o feminino de lobo (lupus), como também era uma palavra usada coloquialmente como sinônimo de prostituta. Logo, nesta linha de interpretação, alguns historiadores e mitólogos sugerem que a loba teria sido uma prostituta que acolheu os órfãos, o próprio Tito Lívio no século I a.C, e posteriormente Plutarco no século I d.C já faziam essa analogia, em se ponderar se a loba seria um animal ou uma mulher. No fim, manteve-se a loba no sentido de animal, pois na época imperial usar a imagem da loba era usar um símbolo que representava o passado romano.

Depois de algum tempo sendo cuidados pela loba e pelo picanço, os irmãos foram encontrados por um camponês chamado Fáustulo, o qual os achou sob uma figueira-brava, chamada Ruminal (segundo Plutarco o nome ruminal viria de ruminante, pois era comum vacas pastarem nas redondezas, daí Fáustulo ter encontrado as crianças), diante de uma caverna no Palatino, chamada posteriormente de Lupercal. Por vários séculos acreditou-se que essa caverna era apenas uma lenda, mas em 2007 arqueólogos italianos descobriram essa caverna. A qual servia como local de oferenda e culto aos irmãos.


Pintura retratando o pastor Fáustulo e sua esposa Aca Laurência diante dos gêmeos e a loba. 
Fáustulo e Aca Laurência adotaram os dois meninos e lhes deram o nome de Rômulo e Remo. Os dois cresceram ao lado dos filhos dos dois camponeses, tendo uma vida de agricultores e pastores, embora que Plutarco já nos conte uma versão diferente, apontando que os gêmeos se mostraram como homens valorosos, corajosos, fortes, destemidos, preocupados com os mais pobres, etc. Aqui notamos uma interferência na história, no intuito de reforçar esse caráter heroico dos dois irmãos, pois em versões mais antigas, não vemos isso. Plutarco também conta que os gêmeos combatiam ladrões, criminosos e piratas, para assegurar a paz de seu povo.

Alguns aspectos a serem salientados diz respeito que Aca Laurência aparece em outras lendas. Uma delas ela teria sido oferecida como recompensa ao herói Héracles, em outra alega-se que ela na realidade não foi esposa de Fáustulo, mas sim uma prostituta, a qual seria a verdadeira "lupa", aqui remetendo-se a questão abordada anteriormente, novamente Plutarco menciona essa hipótese, o que nos revela que já naquela época havia essa problemática na construção do mito, pois Laurência também era o nome de uma divindade associada a fertilidade da terra e a natureza, de fato havia um festival chamado Larentalia, celebrado em abril em sua homenagem.

Mas, retomando a história dos irmãos, aos 18 anos tendo descoberto a verdade, algo que nos mitos e poemas não nos detalha como eles teriam descoberto isso, embora que exista uma versão do mito que indica que Fáustulo seria um camponês a serviço de Amúlio e teria contado ao rei Númetor sobre as crianças. 

"Bem, há dois tipos de proeza. Uma é a proeza física, em que o herói pratica um ato de coragem, durante a batalha, ou salva uma vida. O outro tipo é a proeza espiritual, na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem. A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente, perfaz se um círculo, com a partida e o retorno". (CAMPBELL, 1990, p. 138).

Por esse viés apresentando por Campbell, claramente notamos o fato dos irmãos terem sido abandonados, tendo sido adotados e crescido num contexto social diferente da sua família (Rômulo e Remo pertenciam a realeza de Alba Longa, mas passam a infância e a adolescência vivendo como camponeses), até que quando descobrem a verdade sobre sua origem, decidem confrontar seu tio-avô. Aqui vemos a ideia de partida e retorno mencionado por Campbell. Em outro livro seu, ele também nos fala que é comum nos mitos sobre heróis vermos os mesmos terem que passar por tragédias, para que isso mudasse o caminho das suas vidas. A tragédia e o perigo são questões que sempre acompanham os heróis. 

No relato sobre a Vida de Rômulo escrito por Plutarco, o historiador procurou conceder melhor explicação sobre a misteriosa vida desses heróis gêmeos. Ele nos fala que certa vez, os dois irmãos foram enviados para recuperar alguns bezerros do rebanho do rei Númetor que foram roubados por um grupo de ladrões, contudo, os soldados de Amúlio acabaram capturando Remo o qual se perdera de Rômulo durante a perseguição. Amúlio começou a interrogar o jovem, mas decidiu enviá-lo para Númetor, já que o gado era dele e caberia a ele tomar a medidas punitivas, pois Remo foi confundido com um dos ladrões. Enquanto Remo se reportava a Númetor, tendo que responder suas perguntas acerca de quem ele era, quem eram seus pais, etc., Remo teria dito que era um órfão, adotado por um casal de camponeses, pois quando criança ele e seu irmão foram encontrados ao lado de uma cesta próxima ao rio Tibre, e foram amamentados por uma loba e alimentados por um picanço. 


Uma espécie de picanço, ave que teria auxiliado os gêmeos na fase que estiveram junto a loba. 
Enquanto Remo se reportava, Rômulo retornou para casa e encontrou Fáustulo, o qual lhe dissera que ficou sabendo que Remo se encontrava com o rei Númitor. O camponês decidiu revelar toda a verdade para o rei (aqui notamos que Fáustulo aparentava saber mais do que se imaginava, pois em outros relatos, isso não é evidente). Fáustulo leva a cesta consigo e vai encontrar com o Númitor, enquanto isso, Rômulo que ficou sabendo do ato cruel de seu tio-avô Amúlio (Plutarco nos fala que Fáustulo seria um porqueiro de Amúlio e teria sido o responsável por jogar a cesta no rio. Outras versões dizem que ele não jogou a cesta, mas levou as crianças para sua casa, e a loba (no sentido de prostituta) seria Laurência). 

Enquanto Fáustulo explicava tudo para Remo e Númetor, Rômulo reuniu um grupo de revoltosos, cerca de cem camponeses, então marcharam até Alba Longa. Uma revolta se instaurou e a cidade foi invadida e durante o conflito, Rômulo assassinou o usurpador Amúlio. Assim, eles pediram que seu avô Númetor que já estava bem idoso na época, reassumisse o trono de Alba Longa, então os dois decidiram fundar sua própria cidade, e se dirigem até o Palatino, local onde foram encontrados na infância por Fáustulo. 

Como dito, Plutarco se baseou nos relatos de Díocles de Peparetos e Fábio Pictor, embora que ainda hoje não foi possível confirmar com certeza em que época esses homens viveram, pois o relato detalhado onde algumas partes foram mencionadas neste tempo, provêm dos escritos destes romanos que antecederam Plutarco, mas o próprio Plutarco menciona que não acreditava piamente nos relatos dele, e sugerira que havia invenções destes. Outros historiadores também contestaram a veracidade destes relatos, como será visto mais adiante. 

Uma das explicações é que os mitos diferentes das histórias literárias, eles nem sempre são claros em detalhes para explicar a trama, em muitos casos, eles contam os acontecimentos sem detalhar como que tal ato veio a ocorrer, daí haver falta de detalhes nas histórias de Rômulo e Remo e em vários outros mitos, pois tais histórias eram passadas oralmente, e o problema da tradição oral é que com o passar do tempo, trechos vão se perdendo, ou sendo mudados ou sendo descartados, embora haja exceções.

O fratricídio e a fundação de Roma: 

Depois de conseguirem autorização de seu avô para fundar suas próprias cidades ou comunidades, os dois irmãos retornaram ao Palantino, onde se iniciou o debate da escolha do lugar para se fundar a cidade. O historiador grego Dionísio de Halicarnasso (conterrâneo de Heródoto de Halicarnasso), chegou a escrever sobre a história romana em seu livro, Das Antiguidades Romanas, publicado no século I a.C. Nessa obra ele nos conta sobre o mito dos dois irmãos, dizendo que Rômulo pretendia fundar uma cidade chamada Roma, nas bases do Palantino, mas por sua vez, Remo preferia que a cidade fosse fundada nas bases do monte Aventino e se chamasse Remora.


Os sete montes romanos. 
Os dois irmãos não entraram em consenso, um dos motivos era o fato de serem gêmeos não se sabia quem era o mais velho naquele tempo, logo o direito a primogenitura não poderia ser usado, então eles decidiram aguardar por um auspício (algum sinal divino relacionado ao céu, geralmente a aparição de pássaros, um cometa, uma estrela cadente, um eclipse, etc.).

"Os sinais divinos se manifestavam como fenômenos meteorológicos (auspicia ex coelo), vôo dos pássaros (auspicia ex auibus) tal como na lenda, movimentos das galinhas sagradas (auspicia ex tripudiis) e de animais terrestres (auspicia ex quadrupedibus) ou incidentes (auspicia ex diris) durante a observação, podendo ser solicitado aos deuses (augurio impetratiua), como foi por Rômulo e Remo, ou surgido por si próprios, isto é, pela vontade divina (auguria oblatiua). (BUSTAMONTE, 2001, p. 94). 

Assim, os dois irmãos ficaram aguardando por tal sinal, mantendo a atenção no céu. Segundo a lenda, Rômulo teria avistado um bando de doze abutres voando em direção ao Palantino, já Remo teria visto seis abutres voando em direção ao Aventino, logo, pelo o fato do 12 ser um número mágico entre muitas culturas, e visto de bom agouro, Rômulo decidiu que este era o sinal que aguardava, então pegou um arado ou um pedaço de pau e começou a demarcar os limites da sua cidade, formando um quadrado, algo que ele chamou de Roma quadrata

Depois de demarcar o território quadrangular que daria origem a Urbe (termo usado para se referir a cidade), Rômulo e seus seguidores, pois fala-se que ao derrotar o usurpador, muitos passaram a ter admiração por ele, e decidiram segui-lo na nova empreitada. Logo, eles começaram a erguer um muro, porém, enquanto faziam isso, Remo começou a considerar que o seu irmão tivesse mentido para ele, e decidiu tomar satisfação. Diz-se que os dois começaram a discutir, e Rômulo foi acusado de mentiroso, de trapaceiro, em meio a raiva, ele teria matado Remo, após esse pular o muro baixo, algo considerado um insulto. 

Plutarco nos menciona outras duas versões, onde uma conta que um homem chamado Célere, um dos seguidores de Rômulo, teria sido o responsável pela morte de Remo, o atingido com uma lança, logo depois deste ter pulado o muro. Com medo de uma retaliação, ele teria fugido. Seu nome se tornou sinônimo de rapidez. Outra versão fala que Fáustulo e seu irmão Plistino decidiram evitar que os gêmeos brigassem entre si, mas na tentativa de apaziguar a briga entre os dois fortes homens, Rômulo teria matado além de seu irmão, o seu pai adotivo e seu tio adotivo.

Normalmente a versão mais conhecida, não menciona Célere, nem Fáustulo e nem Plistino envolvido neste incidente, apenas menciona que Rômulo matou seu irmão Remo. Após a morte e o enterro deste, começou-se os preparativos religiosos para a construção da urbe (termo usado para se referir a cidade). 


A morte de Remo e a fundação de Roma. 
"Quanto a Rômulo, assim que, em Remoria, deu sepultura tanto a Remo como as pessoas que os tinham criado a ambos, tratou da fundação da cidade, depois de mandar vir da Etrúria homens que acompanhassem todos os pormenores, de acordo com certas normas e textos sagrados, e os instruíssem, como acontece na iniciação mistérica. 2. Escavou um fosso em forma circular junto da zona onde fica agora o Comício, para nele serem depositadas as primícias de tudo quanto era considerado bom segundo o costume ou necessário por natureza. Por fim, cada pessoa trouxe uma pequena porção de terra dos seus pais de origem e atiroua para o buraco, misturandoa com as restantes coisas. Designam este fosso pelo mesmo nome que dão ao céu: mundus. 17 Em seguida, tomando este circulo como o ponto central, desenharam a volta os limites de toda a cidade". (PLUTARCO, 2008, p. 130). 

Segundo os relatos cronológicos, Roma foi fundada em 21 de abril de 753 a.C, segundo os estudos do estudioso Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C) homem que Plutarco e outros estudiosos admiravam na época por seus trabalhos, alegava que Roma teria sido fundada na data de 21 de abril, dia que se celebrava a Parilia, uma celebração rural. Além disso, ele justificava que no ano da fundação de Roma ocorrera um eclipse solar, como atestava seu amigo o astrônomo Tarúcio, o qual teria realizados os cálculos para fundamentar o eclipse, contudo não ocorrera nenhum eclipse visível na Itália naquele ano de 753 a.C, como se sabe hoje. Além de determinar o suposto eclipse de 753 a.C, Varrão pedira que Tarúcio traçasse o mapa astrológico de Rômulo, a fim de descobrir  a data de nascimento de Rômulo e alguns aspectos da vida do "pai da nação". 

"Tarúcio cumpriu, por conseguinte, o que lhe fora solicitado: depois de analisar as vivencias e feitos de Rômulo, de ligar entre si a duração da vida, a forma como pereceu e outros elementos semelhantes, foi de maneira bastante confiante e audaz que declarou que Rômulo havia sido concebido no ventre da mãe no primeiro ano da segunda olimpíada, no dia vinte e três do mês Choiak no calendário egípcio, na hora terceira, durante um eclipse total do sol, e ainda que tinha vindo ao mundo no vigésimo primeiro dia do mês de Thouth, ao nascer do sol. Roma teria sido fundada por ele ao nono dia do mês Pharmouthi, entre a segunda e a terceira hora. De facto, os astrólogos creem que a fortuna de uma cidade, tal como a de uma pessoa, tem um tempo fatídico, que pode ser calculado a partir da posição dos astros no dia do nascimento". (PLUTARCO, 2008, p. 133). 

A primeira Olimpíada ocorreu em 776 a.C, logo a segunda Olimpíada ocorrera quatro anos depois, em 772 a.C, data a qual Tarúcio apontou como sendo o ano de nascimento de Rômulo e Remo. Acerca do dia 23 do mês Choiak, este mês no calendário egípcio antigo equivaleria ao mês de abril. É importante mencionar isso, pois havia dúvidas sobre a existência de Rômulo e Remo, algo já questionada pelos próprios romanos em seu tempo, logo, a tentativa de conceder datas, era uma forma de respaldar e validar que aqueles acontecimentos e aquelas pessoas foram reais, pois nos mitos não há datas. Poder localizar os acontecimentos no tempo é uma forma de guiar o estudo da História e validar a ocorrência de tal acontecimento, embora que na pesquisa histórica saibamos que em alguns casos, há fraudes.


"Mesmo quando se procura explicar como, a partir de um estado diferente de coisas, se chegou à situação atual (de como, por exemplo, o Céu se apartou da Terra, ou de como o homem se tornou mortal), o "Mundo" já existia, embora sua estrutura fosse diferente, embora ainda não fosse o nosso Mundo. Todo mito de origem conta e justifica uma "situação nova" — nova no sentido de que não existia desde o inicio do Mundo. Os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogonico: eles contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido". (ELIADE, 1972, p. 20).

Embora o mito de Rômulo e Remo não seja um mito que narre a criação do mundo, mas é um mito que narra a criação de uma cidade, de um Estado. De certa forma seria a narração da criação do "mundo dos romanos".

O governo do rei Rômulo:

A tradição nos fala que Rômulo além de ter fundado Roma tornou-se o primeiro rei, além de ser um dos sete reis que governaram a cidade. Coube a ele a organização social, política, urbana, legislativa, etc., neste primeiro momento, pois os outros reis também deixaram suas contribuições em seus governos. Rômulo teria governado de 753 a.C até 717 a.C, quando misteriosamente desapareceu durante uma tempestade, algo que voltarei a tratar mais a frente.


"1. Uma vez fundada a cidade, Rômulo começou por dividir o conjunto das pessoas em idade de pegar em armas por contingentes militares. Cada contingente contava com três mil soldados de infantaria e trezentos cavaleiros; foilhe dado o nome de legião, por os combatentes serem escolhidos entre todos. 2. Em seguida, considerou os outros habitantes como a massa do povo e a essa multidão atribuiu a designação de populus". (PLUTARCO, 2008, p. 133).

É creditado a Rômulo a criação de um conselho que teria dado origem ao Senado. Segundo Plutarco [2008], o rei escolheu 100 homens entre as famílias mais respeitadas, e os chamou de "patrícios", e o conselho que formaram foi chamado de senatus. A palavra patrício originalmente designaria esses homens que compunham tal conselho, mas posteriormente o termo se estendeu para englobar seus familiares e depois passou a se referir a classe dominante, ao mesmo tempo que surgiu o termo "plebeu" para se referir as classes baixas. 

Plutarco também chamara a atenção ao fato de que a palavra patrício viria de patronum (patronato), uma referência a relação da clientela, onde um plebeu buscava a proteção de um patrício (de um patrono). A clientela foi algo bem comum na sociedade romana surgida ainda na época do reino. Os patrícios além de serem vistos como patronos também passaram a ser encarados como os "pais" no sentido de protetor, de chefe, de guardião, de juiz, etc. Esse fato é interessante, pois a plebe só veio a ganhar direitos civis na época da República (509-27 a.C).

Além da divisão da sociedade entre patrícios, plebeus e escravos; além da criação do Conselho dos Anciãos (Senado), da criação de um corpo governamental, da instituição de algumas leis, Rômulo também teria ordenado o famoso episódio do "Rapto das Sabinas". Segundo as lendas, em Roma havia uma escassez de mulheres, logo, Rômulo teria determinado invadir as terras dos Sabinos, a fim de raptar algumas mulheres para levá-las a Roma, onde se tornariam esposas de alguns romanos. A história pode parecer demasiadamente fantástica ou absurda para nós hoje em dia, porém, o rapto de mulheres foi uma prática comum entre vários povos ao longo da História em todos os continentes, mostrando dessa forma não se tratar de algo lendário, mas sim de um contexto real, embora que no caso da história romana, não há provas de que houve um incidente entre os romanos e sabinos por causa de mulheres.

O rapto das sabinas. Pietro de Cortona, óleo sobre tela, 1629. 
"Alguns dizem que foram raptadas apenas trinta donzelas, sendo a partir delas que se deu o nome as tribos; porem, Valerio Antias fala em quinhentas e vinte e sete, e Juba em seiscentas e oitenta e três. Um aspecto muito importante abona em defesa de Rômulo: de facto, não tomaram nenhuma mulher casada a não ser Hersilia, e esta por engano, o que mostra que eles avançaram para o rapto não por violência ou injustiça, mas antes para fundirem e juntarem os dois povos – e ainda assim movidos por imperiosas necessidades". (PLUTARCO, 2008, p. 138).

Para Plutarco, o rapto não teria sido meramente por questões demográficas envolvendo a escassez de mulheres em Roma, mas teria se dado como um motivo para declarar guerra aos sabinos e assim a vir conquistá-los. As lendas falam que após o rapto, os chefes sabinos de diferentes tribos, declaram guerra aos romanos. Plutarco descreve em detalhes essa história, até chegar ao momento que as próprias sabinas para evitarem que mais sangue fosse derramado decidem intervir na batalha e pedem por paz. 

"De facto, as filhas dos Sabinos que haviam sido raptadas podiam avistarse a surgir de todos os lados, lançando gritos e lamentações, por entre armas e cadáveres, como se estivessem possuídas por algum gênio divino. Umas dirigiamse aos maridos e aos pais, outras levavam nos braços os filhos ainda crianças, outras ainda escondiam o rosto com os cabelos desgrenhados, mas todas chamavam, com os nomes mais queridos, ora os Sabinos ora os Romanos. 3. Apiedaramse, portanto, ambos os lados e afastaramse, para dar as mulheres espaço entre as fileiras. A comoção alastrou a todos os presentes e um grande lamento surgiu ao vêlas e mais ainda ao escutarlhes as palavras, que, embora justas e francas, terminavam com suplicas e pedidos. 4. E diziam: Pois que mal ou aflição vos causamos nos, para termos já sofrido no passado e continuarmos ainda a sofrer tão cruéis desventuras? Raptaramnos, a forca e contra a lei, aqueles a quem agora pertencemos. Mas uma vez raptadas, fomos votadas ao esquecimento por irmãos, pais e familiares, a ponto de o tempo nos ter unido, com os laços mais fortes, aos nossos piores inimigos e de presentemente nos fazer recear pelos que ilegalmente nos forcaram, quando se dirigem para o combate, e de os chorarmos quando perecem na batalha".(PLUTARCO, 2008, p. 148-149).

A intervenção das sabinas. Jacques Louis-David, óleo sobre tela, 1799. A mulher ao centro é Hersília, e os dois guerreiros em destaque são Rômulo (esquerda) e Tito Tácio. A pintura um tanto romantizada, mostra ao fundo um castelo que lembra a Bastilha em Paris, edificação destruída durante o início da Revolução Francesa. 
Os romanos e sabinos decidiram parar o conflito. Algumas versões contam que a sabina Hersília, uma das mulheres raptadas foi quem se empenhara em impedir o confronto, levando Rômulo e Tito Lácio, o líder dos sabinos, a concordarem em aceitar a paz. Uma versão conta que Hersília se tornara esposa de Hostílio, o qual foi o avô do terceiro rei de Roma, Túlio Hostílio, o qual foi o responsável pela destruição de Alba Longa. Outra versão, essa mencionada por Ovídio, Plutarco entre outros, na qual diz que Hersília tornou-se esposa de Rômulo, logo, a rainha de Roma. 

Depois do triunfo sobre os sabinos, Rômulo teria fundado um templo para Júpiter Ferétrio e oferecido os espólios de guerra em honra ao rei dos deuses (seu avô paterno de acordo com a lenda). Além disso, ele promoveu festejos, desfiles e jogos para se celebrar a vitória e a união com os sabinos. Segundo Plutarco, o local onde a celebração da reunião foi feita chamava-se Comício, e na época de Plutarco (século I d.C) esse lugar ainda existia e era chamado daquele jeito, pois comício vem de comire que significa reunir.


"A cidade duplicou, assim, a população: uma centena de novos patrícios foi escolhida entre os Sabinos, as legiões passaram a contar com seis mil soldados de infantaria e seiscentos cavaleiros. 2. Instituíram ainda as três tribos e chamaram a uma Ramnenses (a partir de Rômulo), a outra Tatienses (a partir de Tácio) e a outra ainda Lucerenses (a partir do bosque para onde muitos haviam fugido, ao abrigo do direito de asilo, vindo a receber depois a cidadania); de facto, chamam luci aos bosques sagrados. Que as tribos eram três, mostrao próprio nome: de facto, ainda hoje se designam por tribos e os chefes por tribunos. 3. Cada uma das tribos englobava dez cúrias, cuja identificação, segundo alguns, deriva do nome das mulheres sabinas. No entanto, isto pareceme errado, pois muitas têm a denominação de regiões". (PLUTARCO, 2008, p. 151).


Rômulo transporta um rico espólio para o templo de Júpiter. Jean-Auguste Dominique Ingres, tempera, 1812. 
Além da organização das tribos e das cúrias, Rômulo teria organizado o exército romano, criando as legiões e os postos militares, definindo a convocação de 100 homens para cada uma das cúrias, que segundo algumas versões seriam 30, outras falam em 35. Contudo, a ideia de cúria e tribo, foram unidas durante a época da República, e Roma passou a ser dividida na cidade em 4 tribos e no campo em 30 tribos; entenda-se tribo no sentido de distrito. 

"Dizse ainda que Rômulo instituiu, pela primeira vez, o culto ao fogo, designando virgens sagradas, conhecidas por Vestais. Outros, porem, atribuem a medida a Numa, embora admitam que Rômulo fosse, de outras formas, uma pessoa extremamente religiosa e contam que seria especialista em adivinhação, a ponto de introduzir na pratica divinatória o ritual do lituus; tratase de um bastão recurvo, com o qual os augures delimitam as regiões celestes, quando estão sentados a observar o voo das aves". (PLUTARCO, 2008, p. 156).

Existe um detalhe a ser mencionado nessa fala de Plutarco: se Réia Silvia era uma vestal, como Rômulo teria criado o culto a Vesta? Alguns poderão pensar que se trata de um erro lógico, mas na realidade não é bem assim. Plutarco como mesmo dissera, utilizou várias fontes para escrever a sua pseudo-biografia sobre Rômulo, uso o termo "pseudo-biografia", pois trata-se de um personagem lendário, embora que naquela época cogitava-se que foi uma pessoa de verdade. Ao se usar várias fontes, é evidente que você acaba encontrado conflitos entre os relatos, especialmente quando se trabalha com mitos. 

Mas, se por um lado há dúvidas se Rômulo teria sido o responsável por instituir os ritos ligados ao culto a Vesta, sabe-se que a história romana lhe credita a invenção do calendário usado pelos romanos por vários séculos entre o período do reino e da república. 

"Segundo a tradição, Rômulo, o primeiro rei de Roma, organizou um calendário, o primeiro calendário romano de natureza lunar (isto é, composto de dez meses) e resolveu homenagear seu pai mitológico, o deus Marte, o deus romano identificado ao deus Ares helênico, com o nome do primeiro mês do calendário: Primus de patrio nomine mensis eat. Este calendário, criado por Rômulo (753-717 a.C.), tinha 304 dias divididos em dez meses, cada mês variando entre 16 e 36 dias. Posteriormente, o número de dias de cada mês teria 30 ou 31 dias, compreendendo dez meses lunares, sendo que o ano deveria sempre iniciar no equinócio da primavera. Entretanto este calendário teve pouca duração, pois os meses flutuavam pelas estações do ano". (LOPEZ, 2004, p. 972). 

Embora o calendário romano supostamente criado por Rômulo deixou de ser usado há mais de dois mil anos, ainda hoje possuímos um forte legado deste calendário no que diz respeito ao nome dos meses. No Ocidente e em grande parte do Oriente usa-se o calendário gregoriano, proposto em 1582 pelo Papa Gregório XIII, que desde então ainda se encontra vigente em quase todo o Ocidente e parte do Oriente, pois é o calendário que normalmente nós usamos. Nesse caso, se pegarmos os dez meses do calendário lunar romano original, os meses eram estes:
  • Martius - março
  • Aprilis - abril
  • Maius - maio
  • Junius - junho
  • Quintilis 
  • Sextilis 
  • September - setembro
  • October - outubro
  • November - novembro
  • December - dezembro
No ano de 46 a.C, Júlio César propôs uma reformulação no calendário romano na tentativa de corrigir problemas ligados ao número de dias no ano, já que havia uma desigualdade no número de dias como mencionado anteriormente, e para se corrigir isso, César decidiu deixar o calendário lunar e adotar um calendário solar, acrescentando mais dois meses ao ano, e ao invés do primeiro mês ser Martius, passou a ser Januarius o nosso janeiro. O segundo mês acrescentando foi Februarius, o nosso fevereiro. Além dessas mudanças, César lhe fez duas auto-homenagens: primeiro, batizou o novo calendário com o nome de calendário juliano; segundo, o mês Quintilis passou a se chamar Julius, nosso atual julho. No ano 8 d.C, o imperador Augusto modificou o calendário remanejando a quantidade de dias por mês, e também lhe prestou uma homenagem, rebatizando o mês Sextilis com o nome de Augustus, o nosso agosto. O calendário juliano manteve-se em vigor por vários séculos, embora que os imperadores romanos em alguns casos rebatizaram os meses do ano, alguns com seu próprio nome, contudo no ano de 1582, quando foi atualizado pelo papa Gregório XIII, o qual definiu o atual nome dos meses, resgatando a versão proposta por Augusto no ano 8; definiu o ano em 365 dias, e a cada ano haveria um dia a mais, o chamado ano bissexto, pois até então o calendário juliano constava com 11 dias a menos (atualmente o calendário ainda é usado pelas igrejas católicas ortodoxas e possuem 13 dias a menos que o calendário gregoriano). 

A morte ou apoteose de Rômulo?

Embora trata-se de uma lenda que por vários séculos acreditou-se que fosse real, o fim de Rômulo é um tanto misterioso, ele não teria morrido, mas teria sumido ou sido arrebatado pelos deuses. 

A história do adeus de Rômulo se inícia em uma batalha contra os etruscos da cidade de Veios, os quais reivindicaram a posse de Fidenas, alegando que aquelas terras lhe pertenciam e os romanos a tomaram. Rômulo negou a devolver a terra, e assim os etruscos declararam guerra. Plutarco [2008] nos fala que os dois exércitos se dividiram em duas frentes: os romanos estacionaram uma frente para defender Fidenas, enquanto os etruscos a atacavam, e a outra frente liderada pelo próprio Rômulo combatia o restante do exército inimigo em um campo de batalha não determinado pelo autor. É dito que na luta em Fidenas, os romanos foram derrotados, mas no segundo confronto ocorrido com as forças principais, os romanos venceram. 

"Depois de infligir esta derrota, Rômulo deixou fugir os sobreviventes e avançou contra a própria cidade. No entanto, os habitantes não estavam em condições de resistir, depois de um tão grande revés, e pediram antes a celebração de um acordo de amizade com a duração de cem anos, dando em troca uma boa parte do seu território, ao qual se atribui o nome de Septempagium, isto e a ‘sétima parte’, cedendo ainda as salinas existentes ao longo do rio e entregando cinquenta aristocratas como reféns. 6. Rômulo celebrou este triunfo nos idos de Outubro, exibindo, entre outros prisioneiros, também o chefe de Veios, um homem já velho, que parece ter conduzido a campanha de forma incauta e sem a experiência que se esperaria da sua idade". (PLUTARCO, 2008, p. 162).

Plutarco nos conta que após essa vitória, Rômulo com o passar do tempo começou a se tornar um rei mais tirânico, egoísta, soberbo e insensível. Nota-se aqui a derrocada do herói, corrompido pelo poder e pela riqueza. É importante ressalvar que Plutarco escreveu sobre Rômulo no contexto do período imperial, numa época onde a figura do monarca havia recobrado seu respeito, embora houvesse casos de imperadores loucos e cruéis, porém, as fontes que ele usou para escrever seu livro, advêm de autores que viveram no período republicano, uma época onde se havia uma repulsa a monarquia, possivelmente os autores republicanos podem ter inserido nas lendas essa visão negativa sobre a monarquia, a qual Plutarco fizera referência, embora ele nos seus escritos não demonstre concordar com a visão de um "Rômulo tirânico". 

“Orgulhoso dos seus feitos e tomandose em demasiada consideração, começou a afastarse da soberania popular e a assumir um governo monárquico, que se tornou odioso e insuportável, devido ao comportamento que ele foi o primeiro a adotar. 2. Na verdade, passou a usar um manto purpura e uma toga bordada também a purpura e ainda a conceder audiências recostado num trono de espaldar recurvo. A volta dele havia sempre uns jovens chamados Celeres, devido a celeridade com que desempenhavam as respectivas funções.  3. Outros caminhavam a sua frente, munidos de bastões para afastarem a multidão, e tinham ainda correias a cintura, a fim de prenderem imediatamente quem ele designasse. Em latim mais antigo ‘prender’ dizse ligare, mas agora usase antes o termo alligare”. (PLUTARCO, 2008, p. 163). 

Algum tempo depois após a vitória contra Veios, o rei Númitor faleceu, e Rômulo sendo o único herdeiro direto ao trono albano, designou um magistrado para governar a cidade em seu nome. Posteriormente, ele libertou os prisioneiros de Veios e doou terras aos soldados. Contudo, Plutarco nessa parte do livro, chama a atenção para o descontentamento dos patrícios (entenda-se aqui no sentido dos membros do conselho e não no sentido da classe alta), pois estes não detinham nenhum poder no Estado monárquico e estavam sendo ignorados pelo rei.

Se diz que Rômulo morreu no começo do mês de junho do ano de 717 a.C, aos 54 anos de idade e após governar por 38 anos. Sobre a sua morte ou desaparecimento não existe detalhes e ao mesmo tempo existem vários relatos, um deles diz que o rei teria sido assassinado pelos patrícios enquanto se encontrava no Templo de Vulcano, e seu corpo teria sido esquartejado, daí nunca ter se encontrado o corpo. Outro relato diz que ele teria morrido no Pântano da Cabra enquanto realizava uma assembleia, onde de repente o dia se tornou noite, e uma profunda escuridão apenas clareada de relance por raios e trovões, e enxaguada por uma chuva torrencial, pôs a população em fuga, mas quando a luz retornou o rei havia desparecido. Os relatos não mencionam um eclipse, mas falam de uma repentina tempestade. Normalmente esse é o relato mais comum que temos acerca do fim de Rômulo, embora passou a ganhar mais destaque na época imperial, pois alegava-se que em meio a essa tempestade, Rômulo teria sido arrebatado ao céu, onde passara a viver ao lado dos deuses.

"Quando cessou a agitação e a luz voltou a brilhar, o povo reuniuse novamente no mesmo lugar e pôsse a procurar o rei com grande ansiedade. Os nobres, porem, não permitiram que continuassem as buscas nem que se ocupassem demasiado com o ocorrido, mas antes os aconselharam a todos a honrarem e venerarem Rômulo, pois havia sido arrebatado para junto dos deuses e, de um rei excelente, tinhase transformado em divindade benfazeja. 9. Portanto, a multidão acreditou e deu graças pelo sucedido, indose embora a fim de adorar o novo deus, com grandes esperanças no seu favor". (PLUTARCO, 2008, p. 166).

Posteriormente a morte ou a apoteose de Rômulo, um albano de nome Júlio Próculo chegou a Roma, alegando que na estrada teria avistado e conversado com Rômulo:

"Exibia uma aparência bela e majestosa, como não tivera nunca antes, e vinha guarnecido com armas resplandecentes e fulgurantes. E ele, deslumbrado com tal aparição, exclamou: 2. O rei, que te aconteceu e que desígnio era o teu, para nos abandonares a braços com acusações injustas e malévolas, e deixares toda a cidade órfã e mergulhada numa dor imensa?Rômulo deu a seguinte resposta: Aos deuses aprouve, Próculo, que eu passasse este período em companhia dos humanos e viesse a fundar uma cidade destinada a ser a maior pelo poder e pela gloria, e tornasse a viver nos céus, de onde provim. 3. Mas agora adeus; vai contar aos Romanos que, se eles observarem o bom senso juntamente com a coragem, hãode atingir o cume da valentia humana. E para vos ficarei como Quirino, uma divindade benfazeja". (PLUTARCO, 2008, p. 167). 

Assim, pelo relato de Próculo isso confirmava que Rômulo estava vivo, que havia deixado de ser um semideus para se tornar um deus chamado Quirino. Rômulo Quirino foi cultuado pelos romanos, mas existem alguns detalhes a serem considerados, dentre alguns serão tratados mais adiante. 

A questão sobre o deus Quirino:

A ideia de que Rômulo teria se tornado o deus Quirino é bem posterior ao surgimento das lendas. De fato nota-se que foi a partir do século I a.C que começou a surgir o sincretismo religioso em se dizer que Quirino e Rômulo seriam a mesma pessoa. Se pegarmos relatos mais antigos como o de Helânico de Lesbos e de Quinto Fábio Pictor, não há menções ao fato de Rômulo ter se tornado Quirino. Para entendermos o porque disso temos que conhecer um pouco melhor o surgimento deste deus menor. 

Acredita-se que Quirino fosse o deus da guerra cultuado pelos sabinos, e quando os romanos os conquistaram e assimilaram sua cultura, passaram também a adorar Quirino como um deus da guerra, pois inicialmente Marte estava associado a agricultura, e só depois veio a ser associado a Quirino e Ares. Quirino passou a ser cultuado nas Quirinálias, como recebeu um templo no monte Quirinal, e passou a formar a Tríade Capitolina: Júpiter-Marte-Quirino. 


"Quanto ao sobrenome de Quirino, atribuído a Rômulo, alguns explicamno como sendo equivalente a Enialio, outros por os cidadãos se chamarem Quirites; segundo outros ainda, deriva do facto de os antigos designarem por quiris a ponta da haste ou mesmo a lança inteira: por isso, deram o epiteto de Quiritis a estátua de Juno apoiada sobre uma lança e a designação de Marte a haste consagrada na Regia, além de que recompensam com uma lança a pessoa que se distinguir em combate. Por conseguinte, Rômulo ficou conhecido por Quirino, devido ao facto de ser uma divindade “marcial” ou “ equipada com lança”. 2. Em todo o caso, foilhe dedicado um templo no monte Quirinal, cujo nome deriva a partir dele". (PLUTARCO, 2008, p. 170).

Enialio era um epíteto dado a Marte, que significaria algo como belicoso. Por sua vez, Plutarco nos fala que os primeiros romanos teriam se chamado de Quiritis em referência a Rômulo por este ser o filho de Marte, pois quiritis seria uma alusão ao deus da guerra, e os romanos se "consideravam" herdeiros de Marte. 

Todavia, antes do século I a.C, Quirino e Rômulo eram seres distintos: um era um deus associado a guerra e a cidade de Roma, o outro era um rei semideus e pai fundador de Roma. De fato, se diz que Rômulo morreu de causa misteriosa em 717 a.C, pois a versão de sua apoteose é um acréscimo posterior. Outro fato a se considerar é que no século I d.C durante o governo do imperador Augusto, logo no começo do século, o deus Jano também recebia o nome de Jano Quirino, havendo uma complicação a mais por isso.

A ideia de se associar Rômulo a Quirino não é bem clara, pois após o século I d.C, esse deus começou a perder espaço no panteão romano. Ao lermos os relatos de Plutarco, Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso e Ovídio, homens que escreveram entre os séculos I a.C e I d.C, notamos a menção desse lado divino de Rômulo e sua associação ao deus Quirino, como visto no relato de Plutarco, onde Rômulo dissera que era Quirino.

Possivelmente tal sincretismo foi uma forma para se reforçar a importância e o papel de Rômulo no mito de fundação de Roma, se não bastasse ele ter sido um semideus filhos de Marte, ele se tornou o deus Quirino. Mas, esse caso não se limita apenas a Rômulo, sua esposa Hersília também teria sido divinizada, tornando-se a deusa Hora, esposa de Quirino. No livro Metamorfoses, escrito por Ovídio ele dedica alguns versos a contar esse episódio da apoteose da triste viúva que conseguiu dos deuses a permissão para viver ao lado de seu marido transformado em um deus. 


Templo de Rômulo no Fórum Romano. O templo também foi conhecido como Templo de Rômulo e Remo, Templo do deus Rômulo e até mesmo foi chamado de Basílica de São Cosme e Damião no século IV. 
Essa ideia de divinizar pessoas não é uma invenção do mito de Rômulo, encontramos relatos tanto mitológicos quanto históricos. Por exemplo, no caso dos relatos históricos, Júlio César foi deificado, assim como seu sobrinho-neto o imperador César Augusto, assim como os imperadores Tibério, Cláudio, Vespasiano, Tito, Trajano, Adriano, etc. Por outro lado, imperadores como Calígula, Nero e Domiciano tentaram impor um culto a sua imagem, como se fossem deuses, algo que desagradou a população. Logo, vemos na região do Fórum Romano, templos dedicados a alguns imperadores romanos, mas neste caso entenda-se no sentido de ser uma homenagem póstuma, e não de fato que eles eram cultuados como deuses, embora que Rômulo recebeu culto de distintas formas.

Logo, quando formos estudar a história romana, devemos neste caso ter o cuidado de perceber que Quirino e Rômulo não foram a mesma pessoa, apenas por algum tempo considerou-se o sincretismo religioso, pois Rômulo recebia culto antes mesmo desse sincretismo, por exemplo o festival da Lupercália bastante antigo na cultura romana, foi associado a Rômulo e Remo, embora que inicialmente estivesse associado ao deus , chamado pelos romanos de Fauno Luperco

Contextualizando a construção do mito:

Passamos para a última etapa deste texto, conhecer alguns aspectos por trás dos principais autores que narraram o mito de fundação de Roma e a história dos gêmeos semideuses e heróis, a fim de conhecer aspectos por trás da construção deste mito que sofreu mudanças ao longo da história romana. 

"A relação dos antigos romanos com essa narrativa mítica não deve ser considerada de uma forma preconceituosa nem simplista, relegando-a a uma crença numa fantasia ingênua e pueril. Os antigos estavam cientes de que eram construções; Tito Lívio (Prefácio de História de Roma) já atentara que, mais que qualquer outro povo, os romanos tinham o direito de introduzir a interferência divina nos atos humanos para tornar mais veneráveis as origens de sua cidade, tendo em vista sua indiscutível posição hegemônica no mundo mediterrâneo". (BUSTAMANTE, , p. 87).


"Em primeiro lugar, a própria natureza da matéria vai impor problemas de método ao autor, como ele mesmo observa no prefácio, pois não existem documentos históricos seguros sobre os assuntos que ele pretende tratar, os poucos relatos existentes constituem fábulas poeticamente concebidas". (MITRAUD, 2007, p. 12-13).

Os relatos mais antigos conhecidos sobre a fundação de Roma datam do século III a.C, algo que Moses Finley apud Bustamente [ ] assinalara, onde se diz que embora a escrita já fosse conhecida pelos romanos muito tempo antes disso, mesmo assim, grande parte da população era iletrada, e curiosamente não se encontra muito material escrito do início do período republicano e da fase do reino. De fato, os historiadores consideram que dos sete reis de Roma:
  • Rômulo (753-717 a.C)
  • Numa Pompílio (715-673 a.C)
  • Túlio Hostílio (673-641 a.C)
  • Anco Márcio (641-616 a.C)
  • Tarquínio Prisco (616-578 a.C)
  • Sérvio Túlio (578-534 a.C)
  • Tarquínio, o Soberbo (534-509 a.C)
Destes sete reis, os quatro primeiros seriam lendários, sendo os três últimos, os quais foram de origem etrusca, tendo sido pessoas reais. De fato sabemos que Rômulo foi um personagem lendário. Dos quatro reis lendários, dois foram romanos e os outros dois foram sabinos, algo que Tito Lívio explica bem no seu primeiro livro sobre a história romana. Contudo, ele escreveu esse livro entre fins do século I a.C e os idos do século I d.C, conotando assim, sete séculos após a fundação de Roma. 

Logo como Finley e Bustamonte [2001] apontaram: embora a obra de Lívio seja um dos melhores relatos sobre a história romana até o começo da época imperial, os relatos mais antigos datam de dois séculos antes dele escrever, conotando uma lacuna de cinco séculos de história romana. Mas, para o leitor que não conhece muito sobre a História, isso não é algo ímpar dos romanos; vários povos antigos sofreram do mesmo problema, as lacunas históricas; daí o árduo ofício do historiador em se encontrar fontes e relatos para se descobrir essa passado esquecido. A História não vem pronta nos documentos como os positivistas e metódicos nos fins do século XIX alegaram, ela consiste numa difícil tarefa de pesquisa de campo, crítica e reflexão. 

Esse fato é interessante que o próprio Tito Lívio ao escrever sua volumosa obra de cerca de 142 volumes (infelizmente apenas 35 sobreviveram ao tempo, mas alguns destes incompletos) já questionava a plausibilidade das tradições sobre a fundação da cidade. O historiador grego Dionísio de Halicarnasso também trouxe em seu livro Antiguidades Romanas vários relatos acerca da fundação de Roma e a origem de seu nome, algo que Plutarco também fizera, quase um século depois. Na Eneida do poeta Virgílio, ele embora não dedique atenção ao mito de Rômulo e Remo, mas constrói com mais detalhes a versão de Eneias, algo já mencionado neste texto. 

Um fato a ser mencionado é que no século III a.C, Roma estava se expandindo pela península Itálica, e combatia a potência marítima africana de Cartago nas Guerras Púnicas, as obras históricas começaram a surgir nessa época: Névio com sua Guerra Púnica, o já mencionado Fábio Pictor com sua Crônica de Roma, Ênio com seus Anais e Catão, o Censor com suas Origens. Nos dois séculos seguintes teremos outros trabalhos historiográficos, revelando o crescente interesse dos romanos pela sua história, por suas origens. 

"Os primeiros registros históricos romanos nasceram com os analistas, homens que se ocuparam com a anotação de fatos, geralmente ligados à administração política e ritual, a partir de uma cronologia anual. Por esse motivo essas obras receberam o título de Annales. Ao fim do século III a.C., logo após a segunda guerra Púnica, Fábio Píctor escreveu uma obra com o intuito de apresentar ao mundo helenístico a cidade de Roma como a nova potência mediterrânea". (MITRAUD, 2007, p. 26-27).

"O recurso ao passado ou às origens da cidade perpassou a produção historiográfica romana. Assim procederam os primeiros analistas do século III a.C. que usavam o grego para escrever suas obras – dentre os quais se destacaram Fábio Píctor, Cincio Alimento e Póstumo Albino. Marco Porcio Catão (234-130 a.C.) foi o primeiro autor a escrever em latim. De sua Origens só nos restam fragmentos. Foi também Catão quem mudou a concepção de história até então prevalecente em Roma. O foco da história se deslocava da vida dos comandantes, das genealogias que exaltavam as glórias das grandes famílias. Catão, que não descendia de linhagem nobre, lançou luzes sobre o povo romano, a quem julgava o protagonista da história de Roma. Com ele, a visão hegemônica da cidade de Roma passa a ser a visão de toda a Itália. Outra contribuição de Catão para a historiografia romana foi a realização de uma revisão da cronologia analística". (MITRAUD, 2007, p. 27).

Imperador Augusto
Quando chegamos ao século I a.C, Roma vivenciou guerras civis, conspirações, golpes, assassinatos, complôs, viveu um momento instável de seu governo, onde parecia que a República culminava para seu fim (que de fato veio a ocorrer). Quando chegamos ao governo do primeiro imperador, César Augusto, o qual governou de 27 a.C a 14 d.C, Augusto procurou recuperar a identidade romana de seus tempos dourados, reconstruir o sentimento nacionalista que havia se perdido entre seu povo; reerguer Roma de suas crises políticas, econômicas, sociais e culturais. Augusto foi considerado para alguns o melhor imperador da história romana, para outros um dos melhores. Suas reformas reergueram o Estado romano, e lhe proporcionou uma prosperidade por vários anos seguintes, oscilando de acordo com a gestão dos seus sucessores.

Porém, foi no campo cultural e histórico que o mito dos irmãos gêmeos começou a ter maior importância nessa época, já que o intuito era legitimar a identidade e a história romana. Tito Lívio decidiu contar a história de Roma de forma analítica como vinha sendo feita desde o século III a.C, entenda-se aqui analítico no sentido de se escrever anais sobre os principais eventos históricos, assim em seu livro Ab Urbe condita libri, traduzido como "Desde a fundação da cidade" ou "História de Roma", procurou escrever a história romana desde a sua fundação no ano de 753 a.C até até o governo de Augusto. A cronologia sobre os reis romanos e seus reinados, e as referências ao mito de fundação e seu questionamento, foram tratados por Lívio em seus primeiros livros. 

"A sua História de Roma forneceu exemplos de moral prática instrutivos a toda espécie, que deveria guiar e ser imitados, pois eram modelos dignos de imitação, e exemplos a serem evitados por serem ações vergonhosas. Ao relatar toda a história do povo romano a partir das origens da cidade objetivava a celebração de altos feitos do que considerava o maior povo do mundo: o romano". (BUSTAMONTE, 2001, p. 89).

Baseado no princípio da história magistra vitae, ou seja, onde a História era vista como um conjunto de relatos onde se mostrava os acertos e erros da humanidade, para servir de exemplo de como proceder e não proceder, Lívio, quis resgatar através da sua obra o melhor de cada nome importante da história romana. 


Tito Lívio
"Essa exigência foi satisfeita com as figuras dos três primeiros reis, cada um deles expressa claramente uma das três funções da ideologia indo-européia. Rômulo, que protege os pastores dos ladrões, funda a cidade, proporciona mulheres e descendência aos seus homens, exprime a função econômica. Numa Pompílio, infatigável criador de cultos religiosos, de colégios sacerdotais e organizador do calendário, representa o sagrado. Túlio Hostílio, o guerreiro, encarna a terceira função: a militar. Desse modo, no nível ideológico, Roma se construía sobre uma base de perfeição e de totalidade que era garantia de força e de duração". (MITRAUD, 2007, p. 12).

Se por um lado, Tito Lívio procurou respaldar o desenvolvimento do Estado romano, concedendo mais detalhes para o reinado de Rômulo e os reis romanos, assim como reforçando, o mito de Rômulo e Remo, embora ele alegasse possuir suas dúvidas sobre essas histórias, mas sua ligação ao imperador Augusto, o levou a escrever uma história que satisfizesse os planos do imperador de se escrever uma história "gloriosa" de Roma. 


"Em Roma a conjuntura política e cultural também concorria para a produção histórica. O constante reforço da homogeneidade da classe dirigente, da importância da tradição familiar e da distinção nobiliárquica levavam os historiadores a uma fusão da tradição familiar, nobiliárquica, com a tradição mítico religiosa. Desta forma, a tradição legendária acaba por se tornar patrimônio de famílias (gentes). Na Grécia o herói, fosse humano ou divino, era um patrimônio da cidade e de seus cidadãos. Em Roma, o mundo divino era separado do mundo dos ritos, os quais ficavam a cargo da aristocracia. Conseqüentemente a tradição lendária ficava sob a tutela coletiva dos nobres, e os heróis também pertenciam, por extensão, às suas famílias. Assim, pesava sobre a história produzida em Roma uma “forte tensão vertical” procurando sempre ligar situações – e famílias –, a uma origem normativa, a uma “exemplaridade forte, quase fundante” (MORA, 1999, p. 27). Esse exercício era fundamental para que a nobreza romana atualizasse constantemente a sua dominação, tanto interna quanto externa – sobre a população “romana” e sobre os povos constantemente subjugados pela expansão imperialista". (MITRAUD, 2007, p. 28-29). 

Ao mesmo tempo, Augusto visava resgatar a identidade do povo romano, dando maior importância a história, como visto, mas também aos mitos de origem, logo, a fundação de Roma e a história que a antecede.


"Na maioria dos casos, não basta conhecerem o mito da origem, é preciso recitá-lo; em certo sentido, é uma proclamação e uma demonstração do próprio conhecimento. E não é só: recitando ou celebrando o mito da origem, o indivíduo deixa-se impregnar pela atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos. O tempo mítico das origens é um tempo "forte", porque foi transfigurado pela presença ativa e criadora dos Entes Sobrenaturais. Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, conseqüentemente, "contemporânea'', de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis. Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao "viver" os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo "sagrado", ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável". (ELIADE, 1972, p. 17).

Em contra-mão um pouco antes de Lívio começar a escrever seus livros, o historiador grego Dionísio de Halicarnasso também decidira escrever uma história sobre Roma, mas ao invés de atender pedidos políticos, ele decidiu escrever por interesses pessoais, e um outro fato que marca seu trabalho, é que ao invés de priorizar um legado latino ou etrusco para as origens dos romanos (pois Alba Longa era uma cidade latina), ele procurou justificar que na realidade dos romanos descendiam dos gregos.

"Confrontado a tradição latina, Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas,  I, 9-88) inova ao remontar as origens de Roma antes da Guerra de Tróia e de Enéias, defendendo uma tese original: Roma antes de ser Roma era grega, e os romanos eram os descendentes dos mais antigos colonos gregos que se estabeleceram na Itália bem antes da Guerra de Tróia. Essa colonização do Lácio pelos gregos foi o resultado de cinco migrações gregas a Itália, sendo a última a de Enéias, cujo os descendentes fundaram Roma". (BUSTAMENTE, 2001, p. 90).

Outro grego que decidiu escrever sobre a história romana foi o já mencionado Plutarco, o qual assim como vários outros artistas e eruditos gregos, migraram para Roma, impulsionados pelo expansionismo cultural helênico desenvolvido pela República no século I a.C, e continuado por Augusto. Assim, veremos pintores, escultores, filósofos, poetas, historiadores, oradores, políticos, estudiosos, etc., migrarem para Roma, a qual cada vez mais se tornava uma cidade cosmopolita, centro de um crescente império. 

Plutarco
Enquanto o relato de Dionísio visava exaltar o legado grego sobre a fundação de Roma, e por sua vez, a obra de Tito Lívio se tornou um marco na historiografia romana, mostrando uma obra de longa duração de influência analítica e monográfica, Plutarco preferiu adotar algo mais específico: tratar da biografia do fundador de Roma, Rômulo. Plutarco ficou bastante conhecido por sua coleção Vidas Paralelas, onde ele escreveu a biografia de 23 homens importantes da história romana e grega, entre políticos, soberanos e comandantes militares, fazendo uma comparação entre uma figura histórica romana e outra grega. Da sua coleção, talvez o livro mais famoso seja: Vidas Paralelas - Alexandre e César. Em Vidas Paralelas - Teseu e Rômulo, Plutarco aborda a vida de dois personagens lendários, relacionados com a fundação de suas cidades, respectivamente Atenas e Roma. 

"Na obra Vidas paralelas, o autor busca no passado as grandes virtudes de seus heróis objetivando fornecer uma aplicação de suas teorias éticas. Evidencia-se o papel cada vez mais preponderante do indivíduo (reis e chefes militares)". (BUSTAMONTE, 2001, p. 91).

Bustamonte salientara que as obras de Dionísio e Plutarco, nas quais abordaram diferentes versões acerca dos mitos de fundação de Roma, teriam sido tentativas de se tentar racionalizar os relatos míticos para enquadrá-los como sendo verossímeis ao ponto de conceder credibilidade histórica, daí notar-se em determinados momentos Plutarco questionar certas partes das histórias sobre os gêmeos e o governo de Rômulo, pois Plutarco investigou várias tradições para conhecer melhor a história do fundador de Roma, e assim escreveu essa sua biografia, uma das melhores referências sobre esse mito.

No campo religioso e cultural, o mito dos irmãos tivera influência ao longo da história romana, tendo essa influência aumentada ou diminuída de acordo com a época. Vimos que no final do século I a.C surgira um sincretismo religioso entre a figura de Rômulo e do deus Quirino. Mas, além desse sincretismo havia outras questões que ligavam o povo romano a história de seu fundador.

"Os romanos se reconheciam como 'filhos da loba', reclamavam para si uma tal filiação fundamentando-se que o fundador da sua cidade teve esse animal por ama de leite. A amamentação por um animal selvagem - no caso específico, a loba - deve ser considerada atenção. A loba é um animal infernal, ligado ao mundo dos mortos. O contato com o mundos mortos, prova iniciática, dá ao herói uma força e poder de natureza particular. A sobrevivência após esse contanto imortalidade. Por outro, o animal selvagem em si representa a ordem primordial (mundo sem leis, cultos, normas), preexistente ao aparecimento do homem, portanto anterior a civilização representada pela cidade. A criação de um mundo novo, civilizado, ocorria a partir da ordem primordial, marcada pela selvageria, caos e confusão". (BUSTAMONTE, 2001, p. 93). 


Nesta moeda de denário de prata, datada de cerca do ano de 137 a.C, podemos ver a efígie do político Sexto Pompeu, e no outro lado da moeda ver-se a loba amamentando Rômulo e Remo sob o freixo Ruminal. 
"O herói é, pois, inserido no caos (mundo selvagem da loba), passará para o mundo dos homens por etapas: primeiro, a fase pastoril, que não deixa de ser uma preparação militar e uma outra prova iniciática, pois o herói faz sua aprendizagem entre pobres e rudes que ignoravam sua identidade; e, por fim, a fase civilizada quando funda a cidade que trará a ordem e porá fim ao caos". (BUSTAMONTE, 2001, p. 93).

A partir destas citações de Bustamonte podemos retirar três características interessantes do mito de Rômulo e Remo: embora a loba seja vista como o lado selvagem e pré-civilizatório, o lobo também era encarado como um símbolo de força e bravura, e uma conexão a mais com o deus Marte, como já foi mencionado anteriormente aqui. Há relatos do uso de peles de lobos na celebração das Lupercálias e até mesmo por alguns oficiais do Exército, como soldados, porta-estandartes e tocadores de clarim.

Acerca do fato dos gêmeos terem sido criados por um casal de camponeses, remetia-se a origem rural dos romanos, origem essa posteriormente substituída para uma ênfase num legado belicoso. Por fim, a terceira etapa que marca a fundação da cidade de Roma, mostra a condição de civilização que os romanos passaram a atribuir ao seu Estado e cultura. Os romanos se viam como os "civilizadores" do mundo, embora que tal tendência não foi única de sua cultura. Na História encontramos vários exemplos de civilizações que se consideravam os "civilizadores" do mundo.


Ovídio
No âmbito das artes, os poemas de Ovídio (43 a.C - 17 d.C) e de Virgílio (70-19 a.C) foram os que mais se destacaram no século I a.C, embora o mito de fundação seja contando em outras obras poéticas, mas menciono estes dois poetas por causa da influência das suas obras em seu tempo e mesmo passado-se mais de dois mil anos, tais obras ainda influenciam hoje em dia. A principal obra de Ovídio que aborda o mito de fundação e seu poema Fastos


"Nos Fastos, poema escrito em seis livros, Ovídio nos proporciona uma visão privilegiada de fatos, lendas, tradições, rituais existentes em Roma, dos seus primórdios ao império de Augusto. São narrações de fatos até mesmo esquecidos ou ignorados pelos romanos na época da publicação da obra. Poemas escritos ao mesmo tempo que as Metamorfoses, entre 2-8 d.C., com teor acentuadamente didático, foi a última obra escrita na Urbs antes do desterro e, por motivos ainda desconhecidos, nos chegaram apenas os seis primeiros meses do ano". (LOPES, 2012, p. 978). 

"Fasti,-orum (m. pl.), em latim, significa calendário. Inicialmente estes Fasti marcavam apenas os dias festivos dedicados aos deuses mitológicos. Na obra de Ovídio, entretanto, o calendário assume uma característica mais abrangente. Nesta obra de tom didático, serão anexadas, também, datas nacionais, isto é, datas festivas que o Senado incluiu no calendário, a fim de comemorar os aniversários de vitórias de Júlio César e as vitórias de seu filho adotivo, o Imperador Augusto. Deste modo, os Fastos vão abarcar tanto os registros das festas religiosas quanto das festas cívicas, constituindo-se num calendário poético-religioso romano escrito em dísticos elegíacos. E, a partir desta data, iniciam os relatos das festas dedicadas aos homens ilustres de Roma". (LOPES, 2012, p. 980). 

Com esse seu livro, Ovídio aproveitou para mostrar ao povo romano (pelo menos os que sabiam ler) a importância das datas comemorativas, dos feriados civis, para o intuito de reconhecimento a pátria, a a história nacional. Embora trate em poucas páginas da vida dos irmãos Rômulo e Remo, mesmo assim, isso foi bastante importante para acentuar o papel deste mito na história romana. 

Virgílio
No caso da epopeia de Virgílio, a Eneida, embora trate de uma obra inacabada, pois Virgílio dedicou dez anos da sua vida a escrever este extenso poema, mas infelizmente faleceu antes de concluí-lo. Ainda em vida, ele dedicou o poema inacabado em homenagem ao imperador Augusto, o qual reconheceu a Eneida como um poema nacional, que exaltava os feitos do ancestral de Rômulo e Remo e dos próprios romanos, o herói troiano Eneias, e ao mesmo tempo, essa história remetia a linhagem romana até os tempos heroicos descritos nos poemas homéricos da Ilíada e da Odisseia. Aqui vemos o poder do mito em ação. 

Um último aspecto a chamar atenção como forma de contextualizar a popularidade do mito dos irmãos gêmeos, como o principal mito que tornou-se o representante oficial das origens do Estado romano, está associado aos festejos das Lupercálias. 

"Não era apenas no discurso escrito que as origens romanas eram rememoradas. Anualmente, no antigo calendário romano, antes de se iniciar as atividades políticas e militares no mês de março, a sociedade romana comemorava sua origem, ou seja, compartilhava a memória de seu nascimento como cidade através das Lupercálias, nas quais era realizada uma dramatização relacionada ao mito de fundação de Roma. As Lupercálias eram uma das mais arcaicas e tradicionais festas do calendário romano, sendo comemorada em 15 de fevereiro". (BUSTAMONTE, 2001, p. 100).

Embora as Lupercálias estavam associadas as origens do Estado romano, nem sempre foi assim. Há dúvidas de quando essa tradição foi adotada pelos romanos, pois pesquisas indicam que se tratasse de um culto grego, assimilado pelos romanos, e readequado por estes, para atender seus preceitos. Bustamonte [2001] nos mostra duas linhas de interpretação para esses festejos. Primeiro, que tal celebração advinha de um culto ao deus grego Pã Liceu, que passou a ser reconhecido como Fauno Luperco entre os romanos. Pã era um deus metade homem e metade bode, estava associado aos bosques, aos camponeses, aos pastores e ao gado. As pessoas pediam proteção para Pã, para manter suas aldeias, gado e fazendas protegidas contra inimigos e outros males. No caso do Fauno Luperco, pedia-se proteção contra os lobos entre outros males. Pelo fato de Roma ter uma origem agrícola, o reconhecimento com este deus não foi algo difícil de ocorrer. Tal culto teria sido introduzido em Roma por Evandro, um personagem mitológico que teria fundado uma comunidade no Palantino, vários anos antes da chegada de Eneias no Lácio. 

A segunda linha de pensamento, refere-se diretamente ao mito de Rômulo e Remo, onde se explicaria tais festejos como um rito de iniciação, pelo menos de iniciação para os patrícios, como uma forma de iniciação militar, onde os jovens se equiparariam aos lobos, no intuito de se identificar as qualidades positivas deste animal. Ao mesmo tempo, por este ponto de vista, as Lupercálias seriam um festejo para se comemorar a vitória dos gêmeos em terem conseguido sobreviver ao serem amamentados por uma loba, isso refuta a ideia dos romanos de se identificarem como "filhos da loba". Ovídio e Plutarco comentaram brevemente sobre esse festa. Sobre as Lupercálias, Plutarco dissera o seguinte:


"Quanto aos Lupercalia deveriam ser ritos de purificação, a avaliar pela época do ano; de facto, celebramse nos dias nefastos do mês de Fevereiro (que pode ser interpretado como ‘o mês das purificações’) e antigamente aqueles dias designavamse por febrata. O nome desta festividade em Grego significa ‘festa dos lobos’ (Lykaia) e, por tal motivo, parece ser muito antiga e remontar ao tempo dos Arcadios que acompanharam Evandro. 5. Seja como for, esta opinião e geralmente aceite. Afigurase provável que o nome derive de loba, pois constatamos que os Lupercos iniciam a sua corrida a volta da cidade no ponto onde se diz que Rômulo teria sido exposto. 6. Alias, os rituais do festival tornam a sua origem ainda mais difícil de conjecturar: de facto, começam por degolar umas cabras e depois trazem a sua presença dois jovens de nascimento nobre; em seguida, tocamlhes na testa com um cutelo ensanguentado, enquanto outros logo os limpam com uma toalha de lã embebida em leite; depois de serem limpos, os jovens devem soltar uma gargalhada. 7. Posteriormente, talham as tiras a pele das cabras e desatam a correr em pelo, cingidos apenas por um cinto e batendo com as tiras de couro nas pessoas que encontram; as jovens em idade de ter filhos não fogem aos acoites, pois acreditam que ajudam a gravidez e ao parto. 8. Um pormenor típico deste festival reside no facto de os Lupercos sacrificarem também um cão. Certo Butas, que escreveu em verso elegíaco sobre as origens míticas dos costumes romanos, afirma que, depois de vencerem Amúlio, os companheiros de Rômulo foram a correr, muito contentes, ate ao lugar onde a loba havia amamentado os dois bebes. Dizia ainda que a festa seria uma imitação dessa corrida e que os jovens de nascimento nobre corriam batendo nos que encontravam, como outrora, de espada em punho, de Alba vieram a correr Rômulo e Remo". (2008, p. 154-155).

Pintura retratando os lupercos durante a celebração das Lupercálias. 
As Lupercálias foram celebradas por séculos, ao longo de toda a República e o Império, era uma das festas mais populares da cultura romana, principalmente em determinadas épocas. Por exemplo, o imperador Augusto ordenou a reforma da caverna Lupercal no monte Palantino, onde parte destes festejos eram celebrados. Tal caverna foi considerada lendária ou perdida, mas em 2007 arqueólogos italianos a descobriram. 

Teto do Lupercal. 
As Lupercálias além de fazerem referência aos gêmeos heróis, além de ser um rito de iniciação militar, também traria boa sorte e proteção para a cidade. O sacrifício de cabras e do cachorro, era uma forma de oferecer tais animais solicitando dos deuses proteção; por outro lado, o fato dos lupercos (jovens escolhidos para representar os irmãos Rômulo e Remo na ocasião, embora fosse um termo também usado para referir aos sacerdotes de Fauno Luperco) açoitarem as pessoas, inclusive mulheres grávidas, algo que dizia que traria sorte para elas e um bom parto, por outro lado, concederia fertilidade as mulheres jovens, seria encarado como uma forma de expurgar os males, pois o mês de fevereiro era considerado o mês das expiações, e isso refuta esse preceito destas celebrações de expiação.

"As Lupercálias, como rito de expiação, visavam à renovação periódica do mundo, à sua regeneração, através da eliminação de todas as faltas e impurezas acumuladas no decorrer do ano findo. Na ocasião da reatualização do mito, toda a comunidade romana se renovava, reencontrando e revivendo através das festas as suas origens". (BUSTAMONTE, 2001, p. 105). 

A realização das Lupercálias além de tudo isso já mencionado, também foi uma forma de manter vivo uma ligação com o passado de origem do povo romano, uma forma de recordá-lo, de mantê-lo "presente", de viver o mito. 


"De modo geral pode-se dizer que o mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, 1) constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais; 2) que essa História é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidades) e sagrada (porque é a obra dos Entes Sobrenaturais); 3) que o mito se refere sempre a uma "criação", contando como algo veio à existência, ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar foram estabelecidos; essa a razão pela qual os mitos constituem Os paradigmas de todos os atos humanos significativos; 4) que, conhecendo o mito, conhece-se a "origem" das coisas, chegando-se, conseqüentemente, a dominá-las e manipulá-las à vontade; não se trata de um conhecimento "exterior", "abstrato", mas de um conhecimento que é "vivido" ritualmente, seja narrando cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de justificação; 5) que de uma maneira ou de outra, "vive-se" o mito, no sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados". (ELIADE, 1972, p. 18).

Considerações finais:

Ao longo do texto pudemos ver que a história de Rômulo e Remo não era o único mito acerca do surgimento da cidade, havia vários outros mitos, mas embora não sejam mencionados aqui devido a amplitude que ficaria este texto, os interessados procurem os livros de Dionísio de Halicarnasso e de Plutarco, ambos mencionados aqui, e conheçam as outras versões. Não obstante, também vimos que o próprio mito dos irmãos heróis possuem variações como mostrado aqui, ao mesmo tempo que o mito deles foi estendido para se mesclar com o mito de Eneias. 

Além de narrar o mito dos irmãos, também procurei apresentar o contexto histórico acerca da popularização e preferência deste mito pelo Estado e pelo povo romano, pois foi a partir do século I a.C, que este mito começou a se popularizar e cada vez mais ser apropriado pelo Estado como a verdade acerca da fundação da cidade. Embora, Rômulo e Remo e os demais personagens mencionados em suas histórias não foram reais, mesmo assim, é importante ressalvar que as pessoas acreditavam que eles fossem reais. Não sabemos com exatidão até onde ia a fé nestas histórias, e como ela se comportou ao longo do tempo, pois embora as Lupercálias tenham mantido a tradição acerca da história dos gêmeos, mas seria que essa tradição realmente era compreendida como tendo sito o ato de pessoas reais?

Além das Lupercálias, também vimos algumas das principais obras que retratam esse mito, e como o governo do imperador Augusto tivera influência no resgate e legitimação deste mito, e ao mesmo tempo, é importante mencionar que esse mito não foi inventado no século I a.C ou no século I d.C, mas consiste numa história bem mais antiga, já conhecida por parte da população romana desde a época real, mas acabou sendo revivida (daí a menção a um resgate), e ao mesmo tempo, os historiadores como Tito Lívio, Dionísio de Halicarnasso e Plutarco, procuraram conceder certa credibilidade a essa história, de forma a respaldar esse mito fundador e ao mesmo tempo o sentido de identidade romana. 

NOTA: De acordo como relato de Plutarco o nome Rômulo e Remo (Romulus e Remus em latim) adviria da palavra "ruma", palavra essa usada como sinônimo de mamilo, pois quando Fáustulo teria os achado, eles estavam mamando na loba. 
NOTA 2: O poema épico A Eneida de Virgílio corresponde a uma continuação do poema A Ilíada de Homero, tendo foco na jornada do herói troiana Eneias e os sobreviventes que conseguiram escapar. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
PLUTARCO. Vidas Paralelas - Teseu e Rômulo. Tradução do grego, introdução e notas: Delfim F. Leão e Maria do Céu Fialho. Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2008. 
BUSTAMONTE, Regina Maria da Cunha. Rômulo e Remo: ritos e escritos. História Revista, v. 6, n. 2, 2001, p. 87-116. 
LOPES, Eliana da Cunha. O mito como símbolo da fundação de Roma, segundo o III livro dos Fastos de Ovídio. Cadernos do CNLF, vol. XVI, n. 4, t. 1, Anais do XVI CNLF, 2012, p. 972-991.   
MITRAUD, Carlos Augusto. História e tradição no livro I de Tito Lívio. Dissertação apresentada no Mestrado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007. 
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972. (Coleção Debates Filosofia). 
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Palas Athena, 1990. 
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 11a ed. Tradução Adail Ubijara Sobral, São Paulo, Pensamento, 1995. 
LIBERATI, Anna Maria; BOURBON, Fabio. A Roma Antiga. Tradução Alexandre Martins. Barcelona, Ediciones Folio S. A, 2005. 

Um comentário:

Diego disse...

Há esse artigo também, que fala sobre esse período e a República Romana: https://www.historiafacil.com.br/artigos/antiguidade/roma-fundacao-e-monarquia/